Mestra em Ciência Política pela UFRGS, a líder feminista Télia Negrão explica como a quarentena imposta pela Covid-19 aumentou riscos às mulheres
Paranaense de nascimento, formada em Jornalismo pela UFPR e mestre em Ciência Política pela UFRGS, Télia Negrão vive há duas décadas em Porto Alegre, depois de uma carreira na imprensa de seu estado natal e Centro do país. No RS, compatibilizou o trabalho de assessora de imprensa do Governo do Estado com assessoria aos movimentos sindicais, incluindo o Sindicato dos Bancários-PoA. Além de uma das principais referências da luta feminista no país, a jornalista foi assessora da então presidenta da República Dilma Rousseff e atualmente trabalha no mandato da deputada federal Maria do Rosário. É uma das fundadoras do Coletivo Feminino Plural e coordenadora da Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Nesta entrevista, Télia confirma o aumento dos casos de violência contra a mulher, no país todo, em 35% no último mês de abril, em comparação com o mesmo período do ano passado – conforme denúncia da ministra Damares Alves, no dia 15/05. “Apesar de necessário em função da pandemia, o isolamento social e as dificuldades de fazer a denúncia aumentaram o número de mulheres vitimadas por maridos e companheiros no ambiente doméstico”, reforça nesta entrevista a militante feminista. (Na foto abaixo, com a então presidenta Dilma na Finlândia).
Télia Negrão – Em todo o mundo, o atual isolamento social criou maiores barreiras para que as mulheres pudessem denunciar a violência doméstica. Então ocorreu um fenômeno grave: com a redução das denúncias aos serviços públicos, aumentaram as mortes de mulheres. Ou seja, as mulheres sequer conseguiram chegar a denunciar. Não é à toa que a maior consigna na luta contra a violência de gênero sempre foi “quebre o silêncio”. Esse fenômeno foi objeto de um alerta das ONU após a pandemia na China e em alguns países europeus. É uma experiência histórica: em todas as crises sanitárias ou humanitárias, pandemias ou guerras, as mulheres levam a pior. Vi isso no Haiti, na África e está na mídia e na literatura. (Na foto abaixo, da delegação feminina brasileira na ONU, em 2013, Télia é penúltima à direita).
É possível ter outros comparativos da questão nos últimos anos e/ou meses?
Télia – É possível, mas é preciso fazer a seguinte leitura: menos denúncias, mais mortes. Na comparação dos dados de março deste ano, com o março de 2019, as denúncias oficiais caíram 49,1% no Pará, 29,1% no Ceará, 28,6% no Acre, 8,9% em São Paulo – e 9,4% no Rio Grande do Sul. Mas assim como na Argentina, em que ocorreram 96 feminicídios nos últimos meses, no Brasil, no caso de SP, passamos de dois crimes do tipo em março de 2019, para dez feminicídios em março de 2020.
Além dos feminicídios, que outros dados surgiram no âmbito doméstico com a pandemia?
Télia – No pós-isolamento, na China, foi batido o recorde de pedidos de separação pós-quarentena. Na Alemanha foram pedidas até 200 detenções por dia de agressores, quando as mulheres puderam sair de casa. No RS, nota-se uma queda em praticamente todos os índices de crimes violentos – mas o feminicídio subiu em 65% em um mês de isolamento, e em 77% em relação ao ano passado. São mulheres que sequer conseguiram chegar a um serviço, ou porque estavam funcionando precariamente, ou porque elas estavam sem meios de notificar, em função do medo de sair ou de telefonar e alertar os agressores. Mas algumas autoridades da Segurança ainda têm a coragem de dizer que a violência contra as mulheres diminuiu porque as denúncias reduziram…
Historicamente, como está situada a questão da violência doméstica no Brasil e no RS, em relação aos demais países?
Télia – O Brasil tem uma posição desconfortável, especialmente no quesito do feminicídio, estando em quinto lugar no mundo, conforme o Alto Comissariado da ONU. Perde só para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. No Brasil, se mata 48 vezes mais mulheres do que no Reino Unido, 245 vezes mais que na Dinamarca, 16 vezes mais do que no Japão. Entre 2003 e 2013, que é um dado histórico, o número de mulheres assassinadas subiu de 3.937 mulheres para 4.762 – um feminicídio a cada duas horas. Este indicador se mantém, mas deve aumentar com a pandemia.
E a questão da violência sexual no país?
Télia – A violência sexual é gravíssima no Brasil. O país contabilizou mais de 66 mil casos de violência sexual em 2018, o que corresponde a mais de 180 estupros por dia. Entre as vítimas, 54% tinham até 13 anos e os mecanismos de apoio são muito precários. Imaginemos meninas, mulheres com deficiência – tudo isso são agravantes. Apesar de termos uma boa legislação, existe uma cultura de não respeitar a lei, porque a violência sexual tem alta legitimidade social – e que se reflete em elevada impunidade. No caso da violência sexual, este é um problema muito sério, vítimas não são integralmente atendidas, há uma negligência vinculada a credos religiosos, o que tem levado a gestações que são fruto de violência, ou a abortos inseguros. Resta lembrar que as mulheres são consideradas “culpadas” pelo estupro ou pela violência que sofrem, seja pelo tamanho da saia que usavam, pelo local onde estavam ou o que faziam…
Quais mecanismos deflagram a violência doméstica, agora agravada pela necessidade do confinamento em casa?
Télia – O pano de fundo da violência doméstica é a desigualdade nas relações de gênero, a crença dos homens de que são donos das mulheres e que podem decidir sobre sua vida e sua morte. O machismo é uma construção cultural derivada do patriarcado, que determina diferentes valores de acordo com o sexo percebido das pessoas. Então as pessoas são qualificadas em termos de papéis, lugares, funções sociais, capacidades. No convívio cotidiano, se constrói um padrão que se repete, destrói a autoestima das mulheres e se constitui em algo duradouro na vida dos casais. Isso adoece e mata.
Especificamente quanto à mulher – numa situação como a atual quarentena, em que ela não pode sair para trabalhar, estudar, etc. – como fica a sua rotina?
Télia – Há um aumento na rotina de cuidados e de trabalho doméstico, crianças e companheiros em casa o dia todo, tendo que fazer comida, a casa sujando mais, e tudo num quadro de menos dinheiro. A outra realidade vai além disso: quando também se está no trabalho em home office, tudo se acumula, estabelecendo jornadas ainda mais intensas de um trabalho que se torna intermitente, com as pessoas sempre à disposição. Em famílias ou casais, esta rotina pode produzir um tipo de tensão em que as desigualdades nas relações se agudizam, ocorrendo das primeiras brigas até o feminicídio, como temos visto.
A falta de dinheiro para a casa, provindo da mulher (seja como funcionária, empregada ou vendedora, estabelecida ou ambulante), é um dos gatilhos da violência doméstica?
Da mesma forma que o isolamento na pandemia não é produtora do machismo, a falta de dinheiro não é diretamente responsável pela violência de gênero. Mas sabemos que a falta de autonomia econômica leva a mais dependência/desigualdade e aumenta o sentimento, por parte do homem, de que ele domina o espaço e as pessoas. Por isso, políticas públicas para emprego e renda para mulheres são um fator que ajuda a transformar o quadro de dependência e violência.
Qual o papel do atual governo federal neste tipo de subproduto cruel da pandemia na vida doméstica brasileira?
Télia – A crueldade deste governo, a falta de empatia, a falta de políticas públicas e de apoio financeiro às pessoas, certamente se reflete nos sentimentos e na insegurança geral, e isso deve ser visto e considerado no contexto desta pandemia. O papel protetor que deveria ter o estado para com os seus, acabou se convertendo no papel do abandono. Estamos todas e todos como em uma nau num mar revolto. Quem pega a bóia?
Quais são os outros elementos deste processo?
Télia – A base da violência contra a mulher é a cultura patriarcal e a construção de uma subjetividade, de uma sociedade e de um estado formatados para a desigualdade de gênero, para o racismo e para outras formas de discriminação. Mas há outros fatores que influenciam na criação de um clima para a violência, como a existência de uma arma em casa, seja ilegal ou legal, usada no trabalho; seja pelo consumo de álcool e drogas. E o fato de que as mulheres não possam sair de casa para denunciar, e estando os serviços da rede de atendimento em ritmo irregular, produz nas mulheres uma sensação de maior isolamento, solidão e abandono. De outro lado, a situação traz a alguns homens o sentimento de que podem agredir e que nada vai acontecer porque é dentro de casa.
Que mecanismos de controle – polícias civil e militar, Patrulha Maria da Penha, proteção de menores, etc – são ou podem ser acionados em caso de violência ou ameaça?
As redes de atendimento previstas na Lei Maria da Penha, se funcionassem na sua plenitude – e nunca funcionaram assim – dariam mecanismos para prevenir, punir e eliminar a violência. Mas desde o fim do governo Dilma, e no RS nos últimos governos, as redes vêm sendo desarticuladas e os serviços enfraquecidos, apesar da narrativa oficial que diz o contrário. Hoje temos serviços fragmentados e fragilizados. Alguns permanecem ativos, como as Patrulhas, mas o problema da falta de efetividade não é delas – é de todo o sistema de proteção e defesa que está enfraquecido. Vale destacar que o movimento de mulheres, que sempre teve o papel de exigir as medidas cabíveis, não tem sido ouvido, pois não existe diálogo entre a sociedade e os governos federal e estadual. Aqui no RS, inclusive, o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher foi eliminado.
Ainda falta uma consciência maior, na nossa sociedade, sobre o problema da violência doméstica?
Télia – A consciência já cresceu, se formos comparar com o passado, mas pesquisas mostram a persistência de ideias ultrapassadas. Um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2014, mostra que embora 91% dos brasileiros concordem que o homem que bate em mulher deve ir preso, 63% acham que a violência doméstica deve ser discutida só dentro da família; 89% dizem que “roupa suja se lava em casa” e 82% concordam com a frase mais emblemática a ser combatida, de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
E observe que isso tudo se vê ao mesmo tempo em que a violência contra as mulheres é um tema público, está na mídia e na sociedade, é objeto de estudo e pesquisa acadêmica, tem legislação nacional e internacional estando em importantes tratados e políticas públicas. Mas enquanto tivermos o machismo nas relações humanas, e ele provém de uma desigualdade histórica e cultural, haverá legitimidade para que um homem exerça o poder e o controle sobre a mulher. A violência é uma forma de exercer a dominação. Há ainda na consciência individual e coletiva a ideia de que as mulheres servem para algumas coisas e para outras não, de que não são inteiramente capazes, de que não têm condições de exercer sua autonomia, por isso precisam ser moldadas e domesticadas. A violência ou não é um indicador do grau de civilidade e de cidadania.
Quais principais medidas – e leis – conquistadas nos últimos anos para amenizar o problema?
Télia – Há pelo menos três leis importantes. A Lei Maria da Penha para a violência doméstica e que é bem ampla; a Lei do Feminicídio, que tipificou os crimes de ódio contra as mulheres; e a Lei da Violência Sexual, que obriga todos os hospitais a atender mulheres vítimas da violência sexual e cumprir os protocolos, que vão do acolhimento ao aborto legal. Há outras, como a que reconhece o estupro marital ou de importunação em vias públicas ou do assédio no trabalho. Todas elas frutificaram da luta das mulheres desde o período da ditadura, no período pré e pós-Constituição Federal de 1988 e que se realizaram nos governos do PT. Há um dispositivo na Constituição que prevê proteção contra a violência intrafamiliar.
Então temos a previsão de Juizados especializados, as defensorias e o MP, as delegacias especializadas, patrulhas Maria da Penha, serviços de coleta de indícios no DML, casas-abrigo, casas de passagem, centros de referência e as Casas da Mulher Brasileira. Infelizmente, grande parte disso está ou ficou no papel, pois esta rede de serviços está fragmentada e abandonada. Os serviços que sobreviveram à hecatombe trazida por Bolsonaro, pelo governador Leite e aqui em Porto Alegre pelo prefeito Marchezan, tentam cumprir seu papel.
Na atual situação de pandemia, estas leis que foram tão duramente conquistadas têm se comprovado úteis?
O que se tem demonstrado é que sem elas não teríamos como exigir providências. Mas como estão enfraquecidas, na pandemia o quadro ficou mais grave, pois as mulheres têm dificuldade em acessá-las. Não adianta a mulher ligar para o 180 e sua denúncia ficar sem efetividade, isso só aumenta sua vulnerabilidade e medo. Os serviços deveriam estar todos com as portas abertas para acolher. Por isso, elaborou-se em caráter de urgência um projeto de lei, o PL 1291/20, que prevê o atendimento obrigatório durante a pandemia, inclusive on line, e expande a duração das Medidas Protetivas de Urgência. Essa lei é da deputada Maria do Rosário, mas foi assinada por 25 deputadas de vários partidos, porque é um mecanismo para obrigar o atendimento. As mulheres não podem ser mais vítimas do que as demais pessoas nesta pandemia.
Você acha que esta pandemia deixará lições para a humanidade, inclusive em relação à efetividade dos direitos femininos?
Télia – Esta pandemia, como um fato novo na contemporaneidade pela forma de contágio que exige isolamento, trará muitos elementos para a Filosofia, Sociologia, Psicologia e outras áreas do conhecimento humano. Pois nos desafiou a repensar a ideia do direito de ir-e-vir; da obrigatoriedade de usar máscaras não só para a autoproteção, mas também para a proteção da outra pessoa; da redivisão ou compartilhamento do espaço dentro de casa; do uso de equipamentos – como o computador – por todos os membros da família; da distribuição do trabalho doméstico… Enfim, há uma lista tão grande de temas que precisarão ser revistos, que as ciências sociais estarão desafiadas pelos próximos 100 anos.