Além de ser uma pandemia mortal, a Covid-19 provoca reflexos na economia e até nos direitos trabalhistas. Veja as principais alterações na legislação
A pandemia do coronavírus não é, “apenas”, uma doença grave, ainda em estudo pela ciência e com milhões de mortos e doentes em diferentes graus – e que prejudica não só a vida pessoal dos infectados, mas de seus familiares e o funcionamento de empresas e bancos. Esta pandemia traz reflexos também na economia e nas legislações sociais e trabalhistas dos países, num desafio de grandes proporções. No caso do Brasil, para entendermos se a Covid-19 pode ser enquadrada como doença ocupacional, precisamos entender o conceito de doença ocupacional ou profissional.
Doença ocupacional ou profissional é aquela intimamente ligada às condições de trabalho e à atividade laboral desenvolvida pelo trabalhador. Para o Direito do Trabalho é fundamental assegurar a saúde e a segurança do empregado. Assim, existem normas jurídicas direcionadas às doenças ocupacionais e aos acidentes de trabalho. Essa definição é importante para compreendermos se a Covid-19 é considerada doença ocupacional.
Acidente de trabalho
Acidente de trabalho, de acordo com o artigo 19 da Lei nº 8.213/91, é aquele que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, a perda ou a redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.
Para a lei, acidente de trabalho é o que ocorre no próprio ambiente em que é desenvolvido o ofício, ou o ocorrido no percurso de casa para o trabalho e vice-versa e a doença ocupacional.
Doenças ocupacionais
As doenças ocupacionais são consideradas como acidente de trabalho e se dividem em doenças profissionais e do trabalho. AsdDoenças profissionais são resultantes de exercício do trabalho peculiar a determinada atividade laboral, comum a uma categoria de trabalhadores.
São classificadas como doenças do trabalho aquelas adquiridas ou desencadeadas em função de condições especiais em que o trabalho é realizado. Isso quer dizer que são doenças adquiridas por conta do ambiente insalubre em que é desenvolvido o ofício do trabalhador.
Não são consideradas como doença do trabalho, de acordo com o artigo 20 da Lei nº 8.213/91 a doença degenerativa, a inerente a grupo etário, a que não produza incapacidade laborativa, assim como a doença endêmica adquirida por habitante de região em que ela se desenvolva (salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho).
O que mudou nas legislações
Em março, o governo federal emitiu a Medida Provisória 927. Ela permitia algumas medidas que poderiam ser adotadas pelos empregadores sobre teletrabalho, férias individuais e coletivas, banco de horas, suspensão do contrato de trabalho, antecipação de férias, a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho, entre outros.
Para os trabalhadores, algumas das mudanças positivas foram: a impossibilidade de o empregador determinar – unilateralmente – a alteração de trabalho presencial para teletrabalho; e os bancos de horas voltarem a ter os prazos da CLT (seis meses para acordo individual e um ano caso seja acordo coletivo).
Mas, como a validade de seis meses da MP 927/2020 caducou, por não tersido votada a tempo no Comgresso Nacional, esta MP não foi convertida em lei dentro do prazo legal previsto. E a partir do dia 20 de julho de 2020 voltaram a valer as regras da CLT, o que não afeta as decisões realizadas dentro do prazo de vigência da MP.
Vale lembrar que, nos meses em que vigorou, a MP 927 exigia a concordância do trabalhador na definição de itens como teletrabalho, férias individuais e coletivas, banco de horas, suspensão do contrato de trabalho, antecipação de férias, a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho, entre outros.
Atualmente não é mais possível a concessão de férias para períodos aquisitivos ainda não adquiridos por direito. E o pagamento do bônus de um terço de férias e do abono pecuniário voltam a ser pagos na forma do artigo 145 da CLT.
As férias voltam a ser comunicadas ao empregado com 30 dias de antecedência e não mais com 48 horas, e a fiscalização do trabalho volta a atuar de maneira ampla, não mais apenas voltada para orientação.
MP 936
Já a MP 936, que institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda foi convertida na Lei nº 14.020/20, com aplicação durante o estado de calamidade pública provocado pela pandemia. O Programa Emergencial visa reduzir o impacto econômico e social causado pela Covid 19, garantindo a continuidade das atividades laborais e empresariais e com o objetivo de preservar o emprego e a renda.
Contrato e salários ameaçados
Algumas das principais medidas do Programa são o pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, a redução proporcional de jornada de trabalho e de salário e a suspensão temporária do contrato de trabalho.
Há ainda na nova Lei a possibilidade de o empregado contaminado pelo novo coronavírus optar pela repactuação das operações de empréstimos, de financiamentos, de cartões de crédito e de arrendamento mercantil, desde que hajam algumas condições estabelecidas no artigo 25 e seus incisos da Lei nº 14.020/20.
Posicionamento do STF
A Covid-19 é considerada doença ocupacional? Quando da publicação das Medidas Provisórias, que objetivavam contornar e minimizar os desgastes econômicos e sociais provocados pela pandemia, determinados pontos foram muito criticados. O resultado disso foi o ajuizamento de sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) contra a MP 927. Por trás dessas ADIs, havia uma ameaça pairando no ar: se o conteúdo do texto fosse mantido, a consequência seriam demissões sem justa causa.
Em 29 de abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela suspensão da eficácia do artigo 29, que não considera como ocupacionais os casos de contaminação pelo coronavírus (exceto mediante comprovação do nexo causal); e do artigo 31, que limitava a atuação de auditores fiscais do trabalho somente à atividade de orientação, com exceção de algumas situações (falta de registro de empregado, risco iminente, ocorrência de acidente de trabalho fatal, trabalho em condições análogas à da escravidão ou trabalho infantil).
O relator, ministro Marco Aurélio, acompanhado pelos ministros Dias Toffoli (presidente do STF) e Gilmar Mendes, votou pela manutenção do texto da MP 927, por entender que a medida visa atender uma situação emergencial e preservar empregos, não havendo ofensa a regra constitucional.
Entretanto, prevaleceu o voto contrário iniciado pelo ministro Alexandre de Moraes, defendendo que o texto dos artigos 29 e 31 vão de encontro à finalidade da MP 927, que visa perpetuar o vínculo trabalhista. Na interpretação do ministro, o artigo 29 ofende inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que continuam expostos ao perigo da doença.
Já o artigo 31 “atenta contra a saúde dos empregados, não auxilia o combate à pandemia e diminui a fiscalização no momento em que vários direitos trabalhistas estão em risco”. Acompanharam o voto os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Carmen Lucia, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux.
Nexo ocupacional
Dessa maneira, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria dos votos, optou pela possibilidade de caracterização da Covid-19 como doença ocupacional, cabendo ao empregado comprovar o nexo de causalidade.
O nexo de causalidade ou nexo causal é o vínculo existente entre causa e efeito. Comprovar a existência do nexo causal significa dizer que a doença ocupacional (no caso, a COVID-19) é a causa da incapacidade para o trabalho.
Responsabilidade do empregador
Isto quer dizer que a contaminação do trabalhador pelo coronavírus torna-se responsabilidade civil do empregador (ele é quem precisa provar o nexo de causalidade), ficando suspenso o artigo 29 da MP 927.
Porém… Não significa que o STF tenha reconhecido a Covid-19 como doença ocupacional. Significa, isso sim, que foi afastada a regra de que não existia essa possibilidade.
O Supremo entendeu, portanto, que trabalhadores de atividades essenciais estão desincumbidos de provar o nexo de causalidade entre a contaminação e a atividade laboral. Por outro lado, caso a empresa não comprove o nexo, a COVID-19 será considerada doença ocupacional.
E a CAT?
Vale questionar: o que o trabalhador deve fazer se não for emitida a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT)? Para a comprovação de que um trabalhador foi vítima de doença ocupacional é necessária a emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT).
Sendo a Covid-19 considerada doença ocupacional, Souza Júnior et al (2020) esclarece que algumas consequências surgirão:
a) garantia de emprego prevista no artigo 118 da Lei nº 8.213/91 e Súmula 378 do Tribunal Superior do Trabalho;
b) obrigatoriedade de emissão de CAT, nos termos do artigo 22 da Lei nº 8.213/91;
c) possível responsabilidade civil do empregador, que poderá ensejar o pagamento de danos morais e materiais ao empregado e/ou aos seus familiares.
Contato com o público
Em relação aos trabalhadores de atividades essenciais, em contato direto com o público e portanto mais sujeitos à infecção devido à natureza de seu ofício, se contraírem a Covid-19, ela será equiparada a doença ocupacional, o que resulta na emissão da CAT pelo empregador.
Conforme os mesmos juristas, a não emissão de CAT em caso de suspeita de nexo entre o trabalho e adoecimentos acarreta subnotificação, prejudicando as estatísticas e o monitoramento das doenças no ambiente de trabalho, dificultando assim o planejamento de medidas preventivas, violando os artigos 5º, caput, III e XXII, 6º, 7º, caput e XXII, 170, 193, 196, 200, VIII, e 225 da Constituição Federal.
Sindicato em ação
Quando a empresa não emite a CAT, o Sindicato pode fazê-lo – e até mesmo o próprio trabalhador ou seus dependentes. O documento poderá ser emitido pela internet, através do site da Previdência Social, ou presencialmente, nas agências do INSS.
Para emitir a CAT através da internet, basta acessar o site do INSS e seguir as instruções.
Dever do empregador
Importante atentar para o fato de que o empregador tem o dever de registrar a CAT, comunicando à Previdência o ocorrido. Ainda que o trabalhador ou o sindicato façam esse registro, isso não libera a empresa dessa obrigação.
Demissão de trabalhador infectado
A Medida Provisória 927/2020, que perdeu sua validade em 20 de julho de 2020, permitia que, após a licença médica, o trabalhador que tivesse contraído o coronavírus fosse demitido assim que acabasse esse período de licença.
Porém, como a MP caducou, entende-se valer o mesmo de antes, ou seja, o trabalhador possui garantia de estabilidade durante 12 meses após o retorno de sua licença médica.
Garantias da Lei nº 14.020/20
A Lei nº 14.020/20 garante provisoriamente o emprego do trabalhador que receber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, em decorrência da redução da jornada de trabalho e do salário ou da suspensão temporária do contrato de trabalho, de acordo com as regras do artigo 10 e seus incisos da referida Lei.
Se a dispensa sem justa causa ocorrer durante o período citado (redução de jornada e salário ou suspensão do contrato de trabalho), o empregador deverá arcar com o pagamento das parcelas rescisórias previstas na legislação em vigor, além da indenização, que varia de acordo com a garantia provisória do emprego e a hipótese de redução de jornada de trabalho (art. 10, § 1º, I, II e III). Excetuando-se a condição de demissão por iniciativa do empregado.
Direito ao auxílio-doença?
As regras de concessão do auxílio doença estão previstas no artigo 59 da Lei 8.213/91 que estabelece o pagamento do benefício quando o trabalhador permanecer afastado de suas atividades laborais por um período superior à 15 dias.
Após o período inicial de 15 dias o trabalhador deve ser submetido a uma perícia médica no INSS e caso seja constatado a sua incapacidade temporária para retornar às suas atividades laborais, será concedido o benefício de auxílio por incapacidade temporária.
Incapacidade laboral
O fato do trabalhador estar infectado pelo coronavírus não significa, necessariamente, que o benefício por incapacidade será concedido. Para o INSS, o trabalhador tem que demonstrar que os efeitos colaterais do vírus o incapacitam para realizar as suas atividades habituais. Uma vez provada esta incapacidade, o auxílio será concedido ao trabalhador e o pagamento permanecerá até que ocorra a recuperação total para o retorno ao trabalho.
Havendo qualquer medida de combate à pandemia como o isolamento e a quarentena especificados na Lei 13.979/2020, a falta ao trabalho será justificada e não poderá ocorrer qualquer desconto no salário do trabalhador.
Considerações finais
A Decisão do Supremo Tribunal Federal suspendeu o artigo 29 da Medida Provisória nº 927/2020, em que casos de contaminação pelo novo coronavírus não seriam considerados ocupacionais, exceto da comprovação do nexo de causalidade.
Inversão do ônus da prova
Assim, o Supremo considerou a possibilidade de a COVID-19 ser doença ocupacional. Na prática, essa decisão inverte o ônus da prova para o empregador, isto é, a empresa é que deverá provar que toma todas as medidas de prevenção e combate ao coronavírus e que o empregado não poderia ter contraído a doença devido às condições de trabalho.
Questionamentos
Essa situação levanta alguns questionamentos como: De fato é possível afirmar onde e como determinado trabalhador se contaminou? Não seria onerar demais as empresas que buscam se manter em meio à crise econômica? É possível para a empresa garantir que as medidas sanitárias adotadas são extremamente seguras a ponto de manter o trabalhador em total segurança? E para o trabalhador que diariamente corre o risco de se contaminar, essa é uma medida razoável?
São muitos contextos e peculiaridades que precisarão de respostas do Judiciário, ainda mais em se tratando de um vírus sobre o qual ainda há bastante desconhecimento, apesar dos estudos. Sigamos acompanhando as futuras atualizações legislativas e as demandas dos cidadãos diante de situações tão incomuns quanto às provocadas pela pandemia do novo coronavírus.
Fontes: Portal Saberalei, MetaDados, Contraf-CUT e AVM Advogados. Revisão e acréscimos de Antônio Vicente Martins, advogado do SindBancários